Reparem, era um menino. Poderia ser meu irmão ou seu; primo, afilhado, era uma criança. Mas estava lá na porta, com vestes surradas, longe da mãe e com fome.
Há tantos desses meninos por aí que já nem nos surpreendemos mais a não ser que eles gritem ou, nesse caso, apenas soltem uma frase baixinha, quase que por um sussurro, com medo e por isso, pasmem, ela se transforma num eco, em algo gigante pra alguém e assim foi pra nós.
Ele estava com fome e nós ali, nem com tanta fome assim e, tendo ciência de nossa não-fome real fomos dividir o lanche com aquele ser que deveria colocar o Brasil pra frente (não é isso que se fala quando um casal está grávido?) e, no entanto, estava ali no seu lugar incomum (que é bem comum na nossa sociedade). Pedimos pra ele entrar e pegar o que estávamos oferecendo e ele - em seu sussurro - nos diz com uma conformidade espantosa: "eu não posso entrar aí!"
Nessas horas eu lamento por ainda não ter concluído o curso e não ser detentora da habilitação da OAB para advogar. Nessas horas a gente ajuda pela metade, mas não ajuda por completo. E isso me corrói. A gente não vive uma vida pela metade, a gente anseia pelo todo, tudo de uma vez e tem um gosto incrível, a gente sabe que tem. A gente deu um tapa na fome, mas não dá no preconceito. E isso é ajudar pela metade.
O menino não pode entrar ali, por quê?
Ora, você é comerciante e não vai aceitar o dinheiro de alguém que quer comprar o produto que você vende porque a mãe dele não pode dar uma roupa nova pra ele? Porque infelizmente ele vive naquela condição, mesmo não tendo pedido pra nascer?
Eu, nesse momento, não estou aqui pra contestar as regras do estabelecimento (mesmo estando louca pra fazer isso e farei na hora em que me for permitido, né Fátima?) mas a gente vai continuar achando normal uma criança ser privada de degustar um doce só porque é pobre? Não estamos apenas tirando Um doce de uma criança, mas O doce. Sua doçura, pureza e magia, tudo aquilo que é peculiar a uma criança e lhe dá todo o encantamento que nos conquista, dá pra resistir a uma criança? Eu não consigo.
Tão pequeno e já conformado de não poder entrar num local que, sim, é público, já que todo mundo que tenha dinheiro pode entrar e...olha que engraçado, há gente muito bem vestida por aí que rouba e faz estrago que é uma beleza e desses, ninguém desconfia.
É esse o tratamento que se dá para o futuro do país? E se isso é aceitável, será que você pode reclamar de tanta coisa ruim que acontece depois? E...será que dá pra gente parar de colocar a culpa no governo, no vizinho e irmos fazendo nossa pequena diferença?
Que tal a gente ir devolvendo os doces por aí, cada um dentro de sua área de atuação, fazendo sua parte e sem esperar por um governo que, cá entre nós, tem decepcionado horrores. Mas isso é conversa pra outro poste.
A gente fez a parte que podia ser feita e ele comeu. Depois a gente reparou que o dono do local é uma pessoa estressadinha, muito ocupada com o próprio umbigo e que, com certeza, não impediria a entrada de uma criança em condições contrárias a daquele menino, especificamente. A gente foi embora e ele continuou com a gente. E agora tá com vocês também. Ele entrou aqui e aqui ele ainda vai entrar muitas vezes e ó: a gente ainda devolve o seu doce!
Com toda a indignação de hoje
Karina S. de Oliveira.